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11 de janeiro de 2014

Os Melhores de 2013

31 filmes. Foram ao todo, 31 filmes selecionados por mim como os melhores que eu já vi esse ano. Desses 31, me senti obrigado a reduzir pela metade para não criar uma lista grande e poder organizar melhor o que foi visto de bom e o que poderia ter sido melhor.

Listas de fim de ano, dos melhores filmes de um ano são muito difíceis de serem feitas. Afinal, como eu sei quais são os filmes de um ano? Segundo minha organização, isso ficou desse jeito: aqui listo os 15 melhores filmes que chegaram ao Brasil neste ano. E chegaram ao Brasil é uma definição ampla, já que me refiro não só ao cinema, mas aos festivais e às locadoras da região. Com isso excluo da minha lista ótimos filmes que só pude ver esse ano, mas chegaram ao cinema ano passado, como Holy Motors e Laurence Anyways.

Antes de começar, gostaria de lembrar alguns dos excluídos dessa seleção de 31 filmes, que precisaram ser retirados, mas que merecem uma notinha. São eles Elena, Blancanieves, Bling Ring, O Sistema, Capitão Phillips, Um Estranho no Lago e Fruitvale Station - A Última Estação.

#15. A Vida Secreta de Walter Mitty
(The Secret Life of Walter Mitty, Ben Stiller, 2013, 114 min.)

"Ground control to Major Tom"
Estando nesta lista por um caráter muito mais passional do que racional, A Vida Secreta de Walter Mitty é o tipo de filme que vemos no cinema e saímos muito mais leves. O bom astral reina durante as sessões e é difícil não se sentir mais otimista. Ben Stiller mostra que faz o melhor de si quando está por trás das câmeras e o final não decepciona, por mais que entregue uma situação já prevista por qualquer espectador.

#14. Pelos Olhos de Maisie
(What Maisie Knew, David Siegel, Scott McGehee, 2012, 93 min.)

Pelos Olhos de Maisie não foi divulgado nos cinemas brasileiros. Nem no estrangeiro ele apareceu tanto, mesmo com um elenco bom que dá ar ao filme. O que consegue encantar, porém, é a possibilidade de um mundo utópico, em que a visão da personagem Maisie - sempre simplista e sem influências externas - consegue decidir o que é o melhor, sem qualquer desencantamento das regras que surgem com a compreensão do mundo. Lindo de tão simples.

#13. Workers
(Workers, José Luis Valle, 2013, 120 min.)
Workers não chegou a cinema algum - ao menos não que eu tivesse notícia - mas participou do Festival Internacional de Cinema de Brasília. O filme faz um paralelo entre dois trabalhadores e, sem ter tanta pressa, cria uma situação injusta no ponto de vista de ambos. Workers é uma passagem sutil de tempo e uma denúncia às piores realidades trabalhistas.

#12. Os Suspeitos
(Prisoners, Denis Villeneuve, 2013, 153 min.)
"Elas só choraram quando eu as deixei"
Um dos melhores suspenses de 2013 e dirigido pelo canadense Denis Villeneuve, Os Suspeitos trata do uso da força a fim de se obter justiça. Beirando muitas vezes entre a loucura e a sanidade, o filme tem força suficiente para nos fazer imaginar como agiríamos nas situações mostradas. Não deixe a duração assustar, o filme é grande em todos os sentidos.

#11. Tatuagem
(Tatuagem, Hilton Lacerda, 2013, 110 min.)
"Cus, cus, cus..."
Infelizmente Tatuagem é o único filme nacional que figura nesta lista, mas é um dos melhores que se podem ver no cenário brasileiro nesses anos de comédias românticas. Muitas vezes sendo homenagem, muitas vezes sendo paródia artística, Tatuagem é um filme que respira o universo artístico jogando sempre com as margens sociais, que joga com a imagem do homossexual em tempos de ditadura e que nos faz a seguinte pergunta: numa época que estabelece os limites a se seguir, tem alguém melhor que um artista para utilizá-lo até a banalização?

#10. Any Day Now
(Any Day Now, Travis Fine, 2012, 97 min.)
Também pouco conhecido pelo Brasil, Any Day Now é um drama convincente que trata da margem social, de pessoas otimistas que lutam diariamente contra o preconceito contra todos os grupos. A proximidade das situações entre o casal homossexual e da criança com Síndrome de Down são de uma sentimentalidade tocante. Típico filme que deixa com lágrimas escorrendo na cara toda, mas um filme pra não se deixar passar por ter uma carga que deixa a tristeza fluir.

#09. O Passado
(Le Passé, Asghar Farhadi, 2013, 130 min.)
"Ela quer morrer! Por isso ela cometeu suicídio!"
Eu, que conheci Asghar Farhadi com A Separação e mais tarde fui ver Procurando Elly, virei fã de seus roteiros. O Passado, por mais que não tenha o nível de excelência de seu trabalho anterior, ainda é um filme exemplar. Vários ideias seguidos por pessoas diferentes que parecem não ter uma saída, até que desenrolamos ao inacreditável. Ressalto o trabalho excelente de Bérénice Bejo e Ali Mosaffa.

#08. Spring Breakers
(Spring Breakers, Harmony Khorine, 2013, 92 min.)
"Spring break forever, bitches!"
Um verdadeiro choque entre o estereótipo da ilusão das férias de verão contra a parcela que contribui para que tudo isso exista. Drogas, bebidas, sexo, momentos que serão esquecidos durante 11 meses para no final do ano se repetirem. É a epifania das garotas inconsequentes que não conseguem se adaptar com um estilo de vida "normal", a vida se constitui nas férias e pra sempre serão férias. Um verdadeiro divisor de águas, mas de ótimo gosto.

#07. O Ato de Matar
(The Act of Killing, Joshua Oppenheimer, 2012, 115 min.)
"Minha consciência me disse que elas tinham de ser mortas"
Também é bom dizer que, pela falta do elogiado Elena e do crítico Leviathan, O Ato de Matar é o único documentário na lista - mas dentre todos, o melhor. Não só mostra o que foi um dos grandes atos de crueldade do mundo (o ato de matar, como o próprio título ilustra), mas mostra a consciência limpa desse ato durante a maior parte do filme. O grande documentário aqui é a documentação de um arrependimento, tão verdadeiro quanto a história.

#06. Azul é a Cor Mais Quente
(La Vie d'Adèle, Abdellatif Kechiche, 2013, 179 min.)
Um dos filmes mais belíssimos sobre o amor. Ilustrando a paixão de duas jovens lésbicas na França, em círculos que ora as aceitam, ora as denigrem, Abdellatif tem construções incríveis com o retrato de Emma e de Adèle, um retrato que poderia ser de qualquer casal homossexual. É toda forma de amar - com todos os altos e baixos de uma relação - que podemos ver e, realmente, presenciar em tela.

#05. Gravidade
(Gravity, Alfonso Cuarón, 2013, 91 min.)
"Não vou mais ficar dirigindo. É hora de ir pra casa."
O filme que tirou o fôlego de muitos em salas de cinema lotadas. O filme que mostrou que Sandra Bullock sabe atuar. O filme que valeu o ingresso 3D. Gravidade tem muitos nomes, mas depois de toda a experiência visual de renascimento que dura apenas 91 minutos eu só consigo atribuir um a ele: um dos melhores filmes do ano.

#04. Depois de Lúcia
(Después de Lucía, Michel Franco, 2012, 103 min.)
Particularmente, tenho uma crítica com Depois de Lúcia, um filme do qual eu não esperava nada e me mostrou ser mais maduro do que tudo: é um filme exagerado. Mas, de uma maneira ou outra, será que um assunto tão comentado e banalizado atualmente tem chance de marcar alguém se for tratado com sutileza? Uma das maiores surpresas que eu tive, que ilustra os extremos do bullying até chegar na superação por meio da perda.

#03. Amor
(Amour, Michel Haneke, 2012, 126 min.)
Amor. Love. Liebe. Amore. Sevmek. любовь. Amour. É uma só palavra, mas o sentimento que ela exprime ainda assim nos leva a milhares de interpretações sem nunca sermos exatos. Amor, simples, sucinto e direto, ganhador da palma de Cannes e com atuações monstruosas de Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant, um filme que merece ser visto, revisto e, se possível, visto mais uma vez. A definição mais completa que eu tenho pra definir o sentimento.

#02. Frances Ha
(Frances Ha, Noah Baumbach, 2012, 86 min.)
Com uma dose incrível de otimismo e bom-humor, Frances Ha pode ter sido minha maior surpresa do ano, por ter partido de um diretor que já tinha me desapontado anteriormente. Não tenho como descrever em palavras o que funciona no filme: é Greta? É Noah? É o preto e branco, é a trilha sonora, é a montagem? É tudo isso, somado ao incrível sentimento de bem-estar que me preencheu assim que eu saí do cinema. É quase uma Amélie dos Estados Unidos, mas com um egoísmo inato ao ser-humano que permite que o filme seja um retrato fiel, não fictício, de qualquer espectador.

#01. A Grande Beleza
(La Grande Bellezza, Paolo Sorrentino, 2013, 142 min.)
"Mas, minha senhora, o que são essas vibrações?"
O que falar de um filme que te pegou completamente desprevenido? A Grande Beleza é o tipo de filme que consegue agradar a muitos públicos: há um humor ácido que consegue fazer todos rirem. É a crítica ao atual, tendo base na alta sociedade romana e em situações não-ortodoxas que fazem o ritmo do filme de Sorrentino ser cômico e artístico ao mesmo tempo. Com altas ressalvas à arte e sempre com um sentimento saudosista, A Grande Beleza se compara ao cinema italiano em muitas partes. Quem não vê A Doce Vida e 8 1/2 em tantas cenas desse grande contemporâneo é cego. Um retrato fiel não só da Itália, mas do cenário artístico, político e social atual com precisão e ironia.

20 de dezembro de 2013

Gravidade (2013)

Um filme de Alfonso Cuarón com Sandra Bullock e George Clooney.

Toda vez que vou ao cinema pra ver um filme sobre espaço, eu sempre tenho em mente uma única frase clichê que eu sei que vai ser o leitmotiv do filme inteiro: "nós não estamos sozinhos". Sei que quando eu vou ver uma exploração à Marte, nós não estaremos sozinhos. Sei que quando vamos até a Lua numa sala de cinema, nós não estaremos sozinhos. Quando eu for ver o próximo capítulo de Star Wars, eu saberei que não estarei sozinho. E até mesmo quando o argumento tenta transcender os estereótipos, eu chego até Europa (no caso, a lua de Júpiter) e, ainda assim, não estou sozinho. No meio de tanto vazio, parece que é impossível ficar sozinho. Ou ao menos parecia.

O que eu queria dizer com tudo isso é que ao assistir Gravidade, o novo filme de Alfonso Cuarón, eu nunca me senti tão sozinho no espaço, no cinema ou em qualquer outro local que eu tenha visto o filme. Sei que haviam pessoas ao meu lado, sei que eu estava acompanhando a cada momento as aventuras da dra. Ryan Stone (Sandra Bullock), mas eu estava tão sozinho quanto ela. É a capacidade fílmica de se reinventar e reinventar o próprio espaço a cada momento.

Gravidade não se situa num futuro pós-apocalíptico, não necessita de muita imaginação pra ser capaz de imaginar um universo em que as situações acontecem. É simples, na verdade. A câmera pega a história da engenheira espacial Ryan Stone, uma novata nessa área, e a mistura com a história do veterano Matt Kowalski (George Clooney), que se aposentará assim que por os pés de volta a Terra. O que deveria ser tranquilo, apenas uma manutenção em um satélite, se torna um caos: destroços de outro satélite entram na mesma órbita dos astronautas, danificando a nave de Stone e Kowalski. Como únicos sobreviventes, os dois precisam vagar pelo vazio até outra estação espacial, sem segurança, sem chão, com pouco oxigênio e menos combustível ainda.

Daí começa a jornada de Gravidade, repleta de uma ambientação incrível - até mesmo aprovada por especialistas. A direção de Alfonso Cuarón é focada em planos-sequência, muitos mais longos que outros, muitos mais dinâmicos que outros. É de se lembrar, porém, que a qualidade que permanece na fita é a sutileza e a leveza das imagens. A câmera flutua para alternar entra a figura de George Clooney e o desespero de Sandra Bullock. Muitas vezes somos refletidos nos próprios trajes espaciais, como na hora em que a dra. Ryan Stone vaga sozinha pelo espaço e a Terra e o Sol são refletidos em seu capacete, misturados ao olhar de medo e aos sons de respiração ofegante. Como o filme é criado a partir de efeitos visuais, tiro meu chapéu a toda a sessão. O realismo de cenas como a da destruição de um satélite é chocante, e tenho que dizer que a experiência 3D vale bastante a pena.

Fator também excelente em toda a fita é o respeito ao silêncio presente em todos os níveis. Seja em sons diegéticos quanto em trilha sonora, o diretor mantém o maior respeito às leis da física, apenas mantendo como som aquilo que a dra. Ryan Stone ouve. Somos a dra. durante a maior parte de Gravidade. A trilha sonora de Steven Price é  o máximo desse respeito, sempre mesclando seus momentos de ápice construído com um silêncio profundo. Assim como o filme, trilhas como The Void e Don't Let Go respeitam muito a narrativa fílmica, construindo toda uma ambientação que cresce imperceptivelmente. A faixa homônima ao filme, Gravity, que dá os sons aos momentos finais é de uma beleza gritante - quando menos percebemos a voz humana toma forma no fundo de toda instrumentação e dá uma continuidade ao desfecho.

A sensação de que a história não acabou no final é o que realmente fica. Alguns elementos piegas são inseridos no longa (como a história triste e sofrida generalizada de Sandra Bullock), mas os atores conseguem contornar isso bem. A narração de Sandra Bullock não evidencia a perda como principal, mas sua própria solidão - elemento que contorna o filme e passa aos espectadores o sensorial. Afinal, somos Ryan Stone por algum tempo. Somos a lágrima que flutua quando a personagem se entrega a sua dor, somos o fogo que flutua quando a personagem supera sua perda. E, muito além da solidão, somos seu renascimento. A composição de metáforas visuais nos deixa a par disso: quando vemos Bullock em posição fetal, cercada por fios, semelhante a um bebê no útero, é que podemos perceber como a jornada da personagem realmente a transformou. É a verdadeira gestação da independência, da maturidade, da experiência.

Cuarón, num roteiro relativamente simples e num deleito visual, consegue trazer para nós uma solidão incomparável a qualquer outra no universo. É você, sozinho, em meio ao nada, em meio ao vazio. O que resolvemos fazer a partir desta solidão é que é o fundamental. É Gravidade, antes de uma ficção científica, é um filme que serve para mostrar que estamos, sim, sozinhos nesse universo, independente de qualquer outra vida extraterrestre. E que, mesmo assim, ainda somos capazes de nos reerguemos nas nossas próprias pernas.

NOTA: 10

12 de dezembro de 2013

Azul é a Cor Mais Quente (2013)

Um filme de Abdellatif Kechiche com Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux.

Jean-Paul Sartre, em sua filosofia existencialista, já falava que a existência precede a essência. Em sua corrente desprovida de Deus (entende-se por aqui qualquer outra divindade ou ser superior) não podemos dizer que alguém nasce com a pré-destinação de ser correto ou justo. O mundo é o que fazemos dele, carregamos a humanidade em nossas costas, reações e consequências. O filósofo cita isso em sua conferência O existencialismo é um humanismo, que não é por menos citada em Azul é a Cor Mais Quente, novo filme de Abdellatif Kechiche. A essência - ou existência - do filme é completamente permeada pela filosofia Sartriana.

Minha única experiência com Kechiche anteriormente foi Vênus Negra (2010), com uma construção de personagem semelhante a de Azul é a Cor Mais Quente: em ambos as personagens são apresentadas por suas ações, mas em momento algum elas têm a voz para falar o que as define (se é que algo as pode definir). Faz parte da complexidade de um ser-humano, ser mais do que aquilo na tela mostra. Isso fica claro em toda a sessão de Vênus Negra, como um incômodo ao pé do ouvido que só nos mostra o lado do colonizador e a condescendência do colonizado. Nesse novo filme, ganhador da Palma de Ouro em Cannes, a vida de Adèle fica clara à partir do segundo ato.

As três horas de sessão apresentam para nós uma adolescente, ainda em fase de estudos literários, aspirante à professora. Essa adolescente é Adèle (Adèle Exarchopoulos), uma menina que ainda está aberta para novas descobertas em sua vida. Nessa fase de experiências é que ela conhece Emma (Léa Seydoux), uma moça sedutora, com um cabelo azul e vivo, abertamente homossexual.

Para bom entendedor, meia palavra basta. Não é difícil saber com propriedade o que vem a seguir se combinarmos essas duas personalidades de características tão complementares. Mas, como dito antes, ninguém é só o que mostra nas telas.

A história de amor consequente do encontro de Adèle e Emma é impulsivo e explosivo. Em muitos aspectos as duas se completam, em outros temos a sensação constante de que não foram feitas para dar certo. O que, felizmente, dá certo no longa-metragem é a criação desse laço de forma simples e tranquila, sem precisar apressar a paixão, o amor e o tesão para encurtar a sessão. Tendo noção disso, Kechiche explora ao máximo as três horas para criar o melhor clima de paixão entre as duas moças. O resultado? Ninguém consegue perceber o tempo passando na sala de cinema. A primeira troca de olhares das duas é apenas depois de 15 minutos do começo da sessão. A primeira interação real só acontece depois de mais 40 minutos, que servem para fixar um lado da personalidade de Adèle, o lado mais latente naquele momento.

O início do filme consiste em fixar uma Adèle contida, que ainda sofre a influência das amigas em suas escolhas, longe de se abrir para surpresas. A coloração predominante é alaranjada, clara, quase como se a fita estivesse pegando fogo - as noites são quentes, os jantares com a família são muito próximos, as amigas andam todas juntas. O relacionamento primário de Adèle com Thomas (Jérémie Laheurte, namorado da atriz) explode com essas cores. As ruas estão com o tom laranja da pele dos dois, o sexo é envolto com proximidade, o calor humano que a relação de ambos exala é sufocante, até mesmo para a personagem. Adèle não se dá bem com essa proximidade, com essa angústia, com esse ardor intenso.

A quebra dessa proximidade excessiva se dá na próxima cena, quando a protagonista finalmente conhece Emma. Num bar alaranjado (tão alaranjado que quase engole o azul do cabelo de Léa Seydoux) é que as duas finalmente conseguem se falar. À partir daí é um passo para todo o filme mudar de contexto e, assim, trazer junto as personagens. 

Adèle não está mais tão contida. Não há mais um ódio na situação sufocante, há um toque de veracidade em cada palavra, cada declaração que poderia ser definida como um misto de ignorância com limite, mas que transborda sinceridade. A literata que não suporta Sartre, que não conhece os artistas, que não vê a necessidade de concordar com tudo o que é falado. Todos os lugares que Adèle se encontra com Emma são diferentes dos lugares em que Adèle se encontrava com Thomas: são lugares abertos, com predominância de branco, verde, azul claro, de liberdade, de expansão horizontal. As duas tem uma fuga próxima, a protagonista finalmente se encontra confortável em sua situação de um modo que nunca se sentiu no relacionamento heterossexual. Isso a atriz faz questão de mostrar em diferenças de situações, um beijo lésbico mal-interpretado gerou muito mais frustração e dor para Adèle do que o término de um relacionamento com o namorado. 

Quanto a comparação das cenas de sexo, a transa com Emma é muito mais livre também; a cama é pintada com tons de azul e branco, a cena é ampla e não se restringe a duas pessoas ocupando um só espaço, espremidas na tela. Aqui há o prazer da distância, de um plano geral que consiga mostrar os dois corpos femininos no auge do prazer e ainda assim exibir detalhes do espaço. O sexo com Emma é longo, demorado, sem pressa, prazeroso. O prazer é compartilhado, não pesa apenas pra um lado. Admiro muito o trabalho de Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos, especialmente nesta parte pelas cenas explícitas e por uma entrega na atuação.

No segundo ato de Azul é a Cor Mais Quente é que a filosofia de Sartre se faz mais presente. Adèle, antes restringida por rótulos sociais (É lésbica? É hétero? É artista? É trabalhadora?) finalmente acha o conceito Sartriano de liberdade. O que era restrição agora é angústia. A personagem enfrenta dúvidas e sem nenhuma parcialidade na direção, apenas a mostração dessa dúvida de um jeito bem explícito. Adèle, que só se vestia com a cor azul, agora tem detalhes vermelhos em sua roupa. O azul continua sim, presente em qualquer roupa que a atriz vista neste segundo ato, em qualquer detalhe, seja na roupa de cama, seja no oceano em que ela mergulha. O encontro de Adèle e Emma (o perto do desfecho, que eu prefiro não entrar em maiores detalhes) tem uma diferença gritante do encontro no bar lésbico. O ambiente é tingido de azul o tempo todo, dando um detalhe não só intimista como sofredor.

Como Adèle mesmo fala, ela come de tudo, menos de ostras (até aquele momento). Poderia passar mais alguns parágrafos discorrendo sobre as relações familiares ambíguas, décadas de teoria queer, a polêmica cena sexual, a fotografia, a trilha sonora e até mesmo o cabelo de Adèle. Acho que tudo isso é detalhe em um filme que só quer brindar o amor livre. Pela liberdade amorosa, pelo prazer de poder comer de tudo, desde um macarrão à bolonhesa até belas ostras, abertas, espaçosas, brancas. Por uma Adèle que não é nem azul, nem vermelha, mas roxa.

NOTA: 9